Pular para o conteúdo principal

A lei não retroage senão para beneficiar o réu - artigo sobre a "Retroatividade da lei penal" - Folha de São Paulo


A lei não retroage para prejudicar a pessoa. Nunca. Esse é um princípio básico de democracia. Imaginemos o seguinte cenário: hoje você compra uma bicicleta. Amanhã o Congresso aprova uma lei dizendo que comprar bicicleta é um crime. Óbvio que seria injusto você ser punido por aquele novo crime, já que quando você agiu aquela ação ainda não era considerada um crime. Ou seja, a nova lei não retroage para prejudicar a pessoa.

Outro exemplo: homicídio é apenado com uma pena máxima de 20 anos. Você mata alguém hoje. Amanhã o Congresso aprova uma lei aumentando a pena máxima para 40 anos. Depois de amanhã começa seu julgamento. Você será julgado com base na lei antiga, ou seja, você será condenado a, no máximo, 20 anos. A lei, novamente, não retroagirá para prejudicá-lo.

Por outro lado, a lei retroage para beneficiar uma pessoa. Se o caso acima fosse inverso, ou seja, a nova lei previsse uma pena menor, você seria julgado pela nova lei. Outro exemplo: se o crime deixasse de existir na nova lei, você seria libertado, ainda que sua sentença já tivesse transitado em julgado.

O caso exposto no ultimo post é muito interessante porque a nova lei não aumentou nem diminuiu as penas, ela simplesmente unificou dois delitos em um. Até o início deste mês, nós tínhamos dois artigos: o 213, que punia com penas entre 6 e 10 anos de reclusão o crime de estupro (introdução forçada do pênis na vagina), e o art. 214, que punia o crime de atentado violento ao pudor (qualquer outra forma forçada de sexo), também punido com pena entre 6 e 10 de reclusão. A nova lei eliminou o artigo 214 e estabeleceu que, de agora em diante, considera-se estupro (art. 213) qualquer forma forçada de sexo, seja vaginal ou não. Mas ela não mudou a pena: 6 a 10 anos de reclusão.

No caso que vimos no ultimo post, o crime foi cometido antes da nova lei, mas só foi descoberto depois que a nova lei foi publicada. Os jornalistas devem tratar o assunto como atentado violento ao pudor ou como estupro?

Bem, Fulano foi indiciado e acusado por estupro. Isso porque tanto a polícia quanto o Ministério Público entenderam que a nova lei não poderia ser aplicada a fatos anteriores se ela piorasse a situação do acusado, mas que, como a nova lei apenas uniu dois crimes e não modificou a pena prevista, ela pode ser retroagir e ser aplicada ao crime cometido antes de sua existência. Por isso a denúncia foi oferecida com base na nova lei.

Mas se lermos com cuidado a decisão do desembargador que indeferiu o pedido de habeas corpus, fica claro que ele diz que o TJ ainda não tem certeza de como tratar o caso. Diz ele: “Quanto a menção da Lei 12.015/09, esse fato não invalida o processo na medida em que a acusação é identificada pela descrição fática inserta na denúncia, não pela capitulação jurídica nela constante".

Traduzindo para o bom português, o que ele está falando é que a denúncia descreveu o fato (ou seja, os eventos) e que, mesmo que a polícia/MP/juiz da primeira instância estejam errados em enquadrar o crime como estupro e não como atentado violento ao pudor, os fatos ainda assim justificam a prisão. Em outras palavras, ainda que se trate de um atentado violento ao pudor, o crime pode ser julgado baseado na denúncia por estupro porque a denúncia contém a descrição dos fatos, e isso é o suficiente para o juiz julgar corretamente. O fato de o juiz de primeira instância ter aceito uma denúncia não quer dizer (a) que o crime será julgado com base no artigo citado na denúncia e que (b) a sentença será proferida com base no artigo usado na denúncia. O juiz pode reclassificar o delito a qualquer momento.

E como o jornalista deve tratar a questão? Simples: quando estiver se referindo a como as instituições estão tratando o caso até agora, use o que eles estão usando: estupro. Quando for expressar a opinião do jornal, faça menção ao fato de que antes de agosto esses crimes eram distintos e que tal contudo era considerada atentado violento ao pudor. E, na dúvida, simplesmente diga “crimes contra a liberdade sexual” ou “contra a dignidade sexual”, que são os termos genéricos que podem ser usados sem medo de errar. Ou, se preferir, "acusado de cometer atos libidinosos".



Créditos Folha de São Paulo, leia matéria - www.direito.folha.uol.com.br/blog/retroatividade-da-lei-penal 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

LFS DIREITO: Justiça Federal manda suspender Telegram temporariamente e aplica multa de R$ 1 milhão por dia - créditos CNN

LFS DIREITO:  Justiça Federal manda suspender Telegram temporariamente e aplica multa de R$ 1 milhão por dia. Créditos CNN  - - - - -  Siga nosso Instagram @redelfsdecomunicacao  ---  http://www.instagram.com/redelfsdecomunicacao  - - - - -  *Participe do nosso grupo LFS Direito no Whatsapp: https://chat.whatsapp.com/JgUl9XjZYWK5MicJurqnTl *Siga nosso Instagram --  @redelfsdecomunicacao  ---  http://www.instagram.com/redelfsdecomunicacao *Confira nosso Acúmulo sobre Direito Eleitoral: https://capitaofernandodireito.blogspot.com/search/label/Direito%20Eleitoral * Confira nosso Acúmulo sobre Direito Previdenciário: https://capitaofernandodireito.blogspot.com/search/label/Direito%20Previdenci%C3%A1rio   *Confira nosso Acúmulo sobre Justiça Federal Justiça Federal manda suspender Telegram temporariamente e aplica multa de R$ 1 milhão por dia Decisão foi tomada após aplicativo cumprir "de forma precária" determinação de fornecimento de dados sobre grupos nazistas que utilizam a pl

DIREITO PENAL - Em decisão unânime, STF derruba uso da tese de 'legítima defesa da honra' para réus por feminicídio

  DECISÃO UNÂNIME STF derruba uso da tese de 'legítima defesa da honra' para réus por feminicídio - créditos UOL

OAB atua na defesa de pagamento de precatórios e tem decisão favorável no STF

OAB atua na defesa de pagamento de precatórios e tem decisão favorável no STF   1  /  1 Raul Spinassé sexta-feira, 1 de dezembro de 2023 às 11h37 A OAB Nacional obteve decisão favorável na Ação de Inconstitucionalidade (ADI) 7064, movida em face do Supremo Tribunal Federal (STF). A ação questiona a constitucionalidade de normas relativas aos regimes fiscal e de pagamento de precatórios, como a Emenda Constitucional 114/2021, conhecida como “PEC do Calote”.   Em julgamento virtual que terminou na quinta-feira (30/11), o ministro do STF Luiz Fux decidiu parcialmente em favor do Conselho Federal da OAB, bem como da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), que também figura como requerente no processo. Na ação, foi questionada a constitucionalidade de diversas normativas, as quais, de acordo com os requerentes, criam obstáculos para o pagamento de precatórios ao cidadão, “ao autorizar o parcelamento de débitos previdenciários dos Municípios”. Entre elas, estão o § 9º do art. 100 da Co